Sebastião Fernandes Sardinha
Ensaio sobre Sociologia da Educação
“A escola tem de ser boa.
Criança não é masoquista de ficar numa escola ruim.
Escola tem de ser bonita bem equipada
e com professores competentes”
[Cristovam Buarque]
Estes escritos desnudam a opressão logística da sala de aulas, sob a ótica do aluno, sempre (a)notado como objeto de aprendizagem.
O exemplo físico do martírio do aluno no exercício do seu mister educacional é a sala de aulas.
A “sala” de aulas é uma variação bizarra da cela eclesiástica presente nos conventos e seminários ao longo da história.
A “sala” é ergonomicamente construída para oprimir, vexaminar o educando e reafirmar o poder opressório do sistema, na figura do professor, consolidando seu status superior.
Embora rara seja, a cultura continua a reafirmar a dominação professoral que do alto de seu tablado, vigia, fiscaliza a chegada e a permanência do amedrontado aprendiz durante as sessões de incontinência verbal; pois a muitos importa “dar a matéria” sem se importar se o rebento assimilou ou aprendeu.
A arquitetura da cela é conservadoramente igual à de séculos passados, com variações de tamanho dados a adaptação do individual para o coletivo.
A cela, construída originalmente para enclausurar o seminarista ou a “moça” madre é direcionada para oprimir, expor, execrar aquele que atrasado chega ou que mal vai às aulas.
A disposição da porta de entrada é tendenciosamente apontada para frente da turma, com escotilha de vigia.
A Cela de aulas, da maneira tradicional, não tem compromisso com a qualidade do ensino, a considerar que toda vez que alguém adentra no ambiente é imediatamente notado, inclusive pelo professor, que se incumbe logo de despejar suas idiossincrasias no indômito chegante.
A turma fica comprometida cada vez que entra um educando, em virtude do desvio de atenção iminente.
Os utensílios seguem a mesma linha torturante, pois raramente são ergonomicamente confortáveis para as longas horas de subsunção.
A disposição das carteiras (antes), hoje cadeiras, é estrategicamente colocada para definir o grau de estratificação social do aluno. Ou seja, os melhores, na frente, os demais lá atrás.
O exercício do aprendizado é baseado na política do medo, como forma do professor “vencer” os “pestinhas” ou as “pragas” se adolescentes.
O quadro negro, agora verde ou branco, foi arquitetado apenas para os melhores, sem considerar o tamanho da cela, suas peculiaridades, portanto sempre do mesmo tamanho, não importando quem vá usá-lo ou dele usufruir. O importante neste caso é a estética.
A Cela de aulas, como se apresenta em nada favorece o processo de mudança, imprescindível ao crescimento escolar.
Assim a Cela de aulas não é um instrumento democrático a serviço do professor e do educando.
O professor, sempre com muito respeito, faz das vezes de bufão, pois que contaminado pela veia cratológica, imagina-se controlador da situação sendo conscientemente ou ao contrário, instrumento do sistema. O resultado é o desalento a autonegação do educador que fica impotente pela certeza da ausência de resultados.
O Professor deveria como deve ser – para o ensino de crianças e adolescentes - o epicentro das operações de aprendizagem e não o egocentro como ocorre até os dias de hoje.
O olhar para frente do educando pode favorecer uma série de viagens irrespondíveis, longe da vigilância do professor, já que a atenção é artificial, quando deveria ser orgânica.
A atenção artificial é construída sob duas vertentes simultâneas, a concreta e a abstrata. No primeiro caso o educando tem visivelmente sua atenção capturada pelos movimentos por vezes frenéticos do professor e no segundo, permite-se a sua particular viagem pelo imponderável mundo dos sonhos.
A atenção orgânica é a verdadeira abdução pelo professor ao educando permitindo a real interação entre aluno e professor, resultando no melhor do saber.
A Cela de aulas, não é um instrumento democrático, sendo um desserviço para a educação, contribuindo dentre outros fatores para o processo de idiotização do educando.
John Dewey[1] entendia que a verdadeira educação era crescimento em favor da diversidade e, sendo assim, só podia existir na democracia, dado que a democracia era entendida por ele como uma experiência histórica capaz de fazer proliferar pessoas e comportamentos os mais variados.
Os efeitos virais da idiotização do educando, alcança o cidadão no futuro, porque ele lá estará a esperá-lo.
Os analfabetos funcionais são o resultado da má formação na logística dos instrumentos escolares, dentre outros fatores.
A Cela de aulas, não está preparada para receber, o educando com dificuldades visuais, luminográficas; a eqüidistância do centro de atenção é marginal e sem nenhum parâmetro, dificultando sobremaneira a assimilação do conteúdo pedagógico pelo aprendiz.
O desconforto decorrente das condições logísticas da sala de aulas, embrutece o educando, incentivando o espírito de revolta e insatisfação, primeiro com o professor e segundamente com o sistema.
Compreender que em sua casa, senta-se à frente de seus irmãos e pais, (a referência de autoridade) e na escola é deixado para trás, e por vezes, bem lá atrás leva o educando a conclusão de que a escola não é algo bom, aceitável, isto é suportável sob o ponto de vista da dominação ao estilo soft power.
A sala de aulas é o habitus do professor e do educando, como objeto de representação extensiva do lar. A “cela” de aulas é contraditoriamente instalada como componente opressor dos mecanismos de controle social.
Para Bourdieu, [2] em A miséria do mundo, a estrutura do espaço social se manifesta, assim, nos contextos mais diversos, sob a forma de oposições espaciais, o espaço habitado funcionando como uma espécie de simbolização espontânea do espaço social referendando a idéia de que não há espaço, em uma sociedade hierarquizada, que não exprime as distâncias sociais.
Como o espaço social encontra-se inscrito ao mesmo tempo nas estruturas espaciais e nas estruturas mentais que são, por um lado, o produto da incorporação dessas estruturas, o espaço é um dos lugares onde o poder se afirma e se exerce, e, sem dúvida, sob a forma mais sutil, a da violência simbólica como violência despercebida.
A estratificação do território da “cela”, como fator de exercício de poder, faz do educando um refém e ao mesmo tempo um ermitão de muitas pessoas, neste caso, outros educandos. A solidão acompanhada dá força ao mito da memória construída a partir de bases irreais, faz nascer dentro do contexto da atenção artificial, um mundo medonho que vez por outra explode em revolta e provocação contra o Sistema imperante. Temos assim, o delinqüente juvenil. Desabando o imaginário da segurança familiar, nada mais resta ao educando do que fechar-se na cela de sua atenção artificial abstrata.
A depredação de salas de aulas tornou-se caso corriqueiro, a alvoroçar as elites burocráticas.
Destarte, a sensação de segurança e acolhimento é prontamente alijada diante do quadro burocrático, frio e impessoal que a “cela” de aulas representa.
A própria nominação referencial ao educando, ao ser chancelado de “aluno”, (ser sem luz), guarda a imposição do discurso hegemônico do sistema visando destacar a hipossuficiência do candidato ao saber burocrático. Desde muito, o educando já nasce com muitas horas de informações adquiridas no ventre materno pelas promoções emocionais ou nervosas incorporadas por ela.
Aos seis (06) anos, o educando já ingressará na escola - e por conseqüência na cela – com duas mil cento e noventa horas (2.190) de informações educativas obtidas na família, na Igreja, internet, etc...
Aos dezesseis anos (16), estima-se que o educando disponha de 47.000 horas, de informações e experiências adquiridas diuturnamente através dos meios de controle social.
Portanto, é paradoxal classificar o educando como um ser sem luz (aluno), rejeitando o docente, a bagagem de conhecimentos empiricamente colocados na vida daqueles propiciando o distanciamento pelo primeiro do aprendizado, compreendendo-o como algo fora de si, que pertence aos outros. A alienação pelas barbas de Karl Marx faz do indivíduo um ser impróprio, sem identidade original.
Poderíamos construir o pensamento de que a escolarização pós-moderna desconstrói toda a gama de conhecimentos impingidos ao educando pelo Sistema através de todos os mecanismos de controle social.
Em verdade o Sistema através da secularização da educação tem por objetivo desconstruir o baú de informações geneticamente alocadas, para possibilitar a formação do homem dócil.
Admitamos que a totalidade dos acontecimentos decorra da globalização.
Para Held e McGrew[3], a globalização representa uma mudança significativa no alcance espacial da ação e da organização sociais, que passa para uma escala inter-regional ou intercontinental. A globalização gera certa mudança cognitiva, que se expressa numa conscientização popular crescente do modo como os acontecimentos distantes podem afetar destinos locais (e vice-versa), bem como as percepções públicas da redução do tempo e do espaço geográfico.
A “cela” é a periferia do educando, construída dentro de um realismo atroz e massificante, sempre na busca do homem dócil.
Peter Berger[4] arremata: aquilo a que se chama consenso geral é na verdade o mundo dos adultos aceito como óbvio – a ficha escolar transformou-se numa ontologia. Agora a personalidade passa a ser identificada, naturalmente, com a maneira como a pessoa está localizada com precisão no mapa social. O que nos interessa no momento é a maneira como essa localização informa a um indivíduo aquilo que ele pode fazer e o que pode esperar da vida. Estar localizado na sociedade significa estar no ponto de interseção de forças sociais específicas. Geralmente quem ignora essas forças age com risco. A pessoa age em sociedade dentro de sistemas cuidadosamente definidos de poder e prestígio. E depois que aprende sua localização, passa também a saber que não pode fazer muita coisa para mudar a situação.
É o “sistema”, o mapa traçado por estranhos, sobre o qual tem-se de continuar a rastejar.
REFERÊNCIAS
[1] - BERGER, Peter – A PERSPECTIVA SOCIOLÓGICA- O HOMEM NA SOCIEDADE, pag.79, Vozes, Petrópolis, 1972;
[2] - BOURDIEU , Pierre (Coord.), A miséria do mundo, Petrópolis, Vozes, 1997, p. 163.
[3] - GHIRALDELLI jr, Paulo - História da Educação brasileira, pag.151-._Editora Cortez- São Paulo.
[4] - HELD , David e MACGREW, Antony – PRÓS E CONTRAS DA GLOBALIZAÇÃO, PAG.12-Jorge Zahar- Editores.Rio de Janeiro.
Texto veiculado na revista eletrônica Médio Paraíba
http://www.medioparaiba.com.br/revista/noticia.php?l=13b22bb52ac2bd9fda9e87e46047126e